terça-feira, 23 de janeiro de 2018

O INÍCIO DA GRANDE AVENTURA

O INÍCIO DA GRANDE AVENTURA

O início da grande aventura.
Janeiro chegou. Pouca chuva para a época. O Brasil experimentava grande euforia com o desenvolvimentismo de J.K. No plano internacional a manchete: a revolução cubana tendo à frente o Comandante Fidel Castro toma o poder. Na capa da revista Manchete sua foto; barbudo, ainda jovem, com o uniforme de revolucionário. Figura simpática, ninguém imaginava que depois viria o paredon e o socialismo na ilha. Os últimos preparativos para a mudança. Como estava próxima a festa de São Sebastião, padroeiro da cidade, meu pai não quis fazer a mudança antes; ficou decidido que no dia seguinte partiríamos. Como sempre nessas ocasiões, alguns desencontros de última hora; o carro que levaria a mudança até Monlevade, estação ferroviária mais próxima, enrolou o dia todo e deixou todos na mão. Como fazer a comida, um café, se tudo estava encaixotado? A sorte é que os bons vizinhos vieram em nosso socorro. Já era noite quando o vizinho Zé Grande, proprietário de um caminhãozinho Chevrolet Gigante daqueles usados então, se dispôs a levar a mudança. O carro não estava em ordem, pára-choques amarrado com arame, mas à noite talvez pudesse passar em São Domingos do Prata sem ser importunado. Até hoje penso como conseguiu organizar tudo no caminhão, além do pessoal; veio ainda conosco um rapaz de Sem-Peixe que ao chegar aqui não gostou e voltou imediatamente. Quando o silêncio pairou sobre a cidade e tudo parecia dormir, arrancamos. Eram vinte e três horas e vinte cinco minutos. O ronco do motor parecia abafar o clima de melancolia e ao mesmo tempo de esperança. A antiga igreja matriz com seu aspecto solene parecia abençoar; breve também ela cederia seu lugar para outra mais moderna. As últimas casas, a capela de Santo Antônio e Dionísio começou a ficar para trás; a sinfonia das águas da cachoeira do ribeirão quebrando o silêncio, a estrada serpenteando as encostas íngremes demandando o alto da serra das Posses; lá chegando, um último olhar, o cruzeiro iluminado, no morro que domina a cidade, destacando-se no meio da escuridão da noite como uma visão de fé e esperança; foi desaparecendo, desaparecendo como se um negro véu o fosse cobrindo gradativamente; como se uma página do livro se dobrasse, um capítulo se encerrasse e outro tivesse o seu começo...
De madrugada chegamos a João Monlevade. Meu pai, com a experiência de muitas mudanças, providenciou o despacho pela Central do Brasil. Uma máquina de costura Singer antiga, uma bicicleta Bristol importada e já bem velha, caixotes de roupas e ferramentas além de vasilhame. Até hoje existe duas alavancas, uma pá, um pé-de-cabra e outras ferramentas pequenas. Ainda deu tempo para conhecermos alguns pontos interessantes da cidade, o rio Piracicaba, a uzina da Belgo vista de longe, a igreja com uma gruta de Lourdes linda. Embarcamos rumo a BH, o trem serpenteava por entre vales e serras; a cada estação observava a altitude, já passava muito de mil metros, uma paisagem maravilhosa enchia as vistas. Minas Gerais é mesmo encantadora. As cidades históricas enchiam-nos de curiosidade, principalmente Santa Bárbara, Barão de Cocais, Caeté e Sabará. Ao aproximar de Belo Horizonte, na estação de General Carneiro, notamos que a nossa bagagem estava sendo descarregada para ser guardada em outro vagão. Não esqueço que alguém, passageiro do trem, ao ver aqueles caixotes disse: “deve ser mudança de algum baiano”. Coitado do nordestino pau-de-arara parece ser símbolo da retirada. A capital era um encanto de cidade. Com amplas avenidas e muita beleza, os veículos circulavam tranqüilos sem o tumulto do trânsito de hoje. Passeamos a noite, pernoitamos e de manhã embarcamos para a parte mais desconhecida da viagem rumo às barrancas do São Francisco. Ao tomar a direção do sertão, uma bifurcação da linha e uma pequena placa indicando “para o sertão”, a vegetação começa mudar, as grandes serras começam dar lugar a uma topografia mais plana. Sete Lagoas, Curvelo, Corinto e adentramos no mais autêntico sertão. Campinas floridas, cerrados; ao longo percebia-se que o rio das Velhas servia de baliza para aquela penetração interminável. Longo dia de verão, o trem sacolejando até que enfim a tarde foi caindo; uma chuva cobria aquela serra ao longe; de vez em quando, perdido naquele imenso cerradão, um pé de estribo. Um solitário passageiro denunciava a presença do homem naquelas paragens, dava o sinal e o trem parava embarcando talvez com destino à outra estação perdida naqueles ermos. Ao contornar uma vereda pela primeira vez vi pés de buriti; ficava intrigado ao verificar que as palmas estavam podadas, nunca imaginava que alguém galgasse o pé para cortar as folhas. Finalmente o trem chegou à Várzea da Palma, ponto de janta; outra surpresa nos aguardava, no banco da estação um enorme surubi estendido, creio que não era surpresa para ninguém da região acostumada com a cena. Nós vindos de uma região cujos peixes quando muito grande chegava a um palmo, ficamos admirados com o tamanho do pintado. O trem apitou e arrancou para a última etapa da viagem. Escuridão total, não se via mais nada, quando de repente a máquina começou reduzir a velocidade denunciando uma parada próxima. Lampiões iluminaram precariamente a modesta estação de Buriti das Mulatas perdida naqueles confins do sertão. Os passageiros acostumados com a viagem perceberam que comboio aproximava-se de Pirapora. Até que enfim ouvimos o ronco violento das águas do São Francisco que corriam livres, pois ainda não havia sido construída a barragem de Três Marias. Apesar do cansaço, a gente ficava impressionada com o barulho das águas, parecia que era uma grande enchente, o rio apenas estava um pouco mais cheio. No dia seguinte fomos conhecer a cidade, o cais do porto e outras atrações. A ponte Marechal Hermes transpunha com ousadia o rio. A estrada de ferro que partia da estação Pedro II no Rio de Janeiro deveria penetrar pelo sertão e chegar até o Pará. Buritizeiro às margens do rio não tinha a opulência de Pirapora; as casas eram baixas, a igreja e a Escola Caio Martins se destacavam. O monumental cais do porto serpenteava a orla do rio dando um aspecto de grandeza com os barcos atracados. A igreja matriz ainda não era forrada deixando os caibros à vista; um frei franciscano fazia um batizado. Mal sabia que daí a alguns anos, em 1976 seria celebrado o meu casamento nesta mesma igreja. Embarquei num domingo em um ônibus com minha mãe e as duas irmãs; meu pai e os irmãos ficaram para vir de caminhão junto com a mudança. O destino do ônibus era o vilarejo de Fróis (hoje Bonfinópolis) e o dono chamava-se Zé Tota. Atravessou o São Francisco, passou em Buritizeiro que chamavam de Piraporinha e começou a subir um morro embrenhando-se pelo cerrado. Paralelo à estrada havia uma linha telefônica decadente; essa linha tinha destino à Formosa, conforme pude saber depois; interessante notar que a mesma passava exatamente onde iríamos morar. Tendo saído às seis horas, chegamos ao Paredão às onze e meia, lá era o ponto de almoço. Uma modesta pensão serviu o almoço; não esqueço a farinha de mandioca, parece indispensável no cardápio da região. O ônibus, daqueles pequenos que eram usados na época arrancou e daí a pouco se avistava as barrancas do Paracatu. Ficamos preocupados ao ver aquele rio imenso, com a água suja, a balsa estava atracada junto ao barranco amarrada com cordas à uma grande gameleira. Embarcou o ônibus e o pessoal; todos encaravam aquilo com a maior naturalidade, menos nós, marinheiros de primeira viajem. O Cícero puxou a saca-polia e o motor roncou com força. Observava a outra margem rezando para chegar depressa, o barco começou a subir rio acima, parecia que não atingiria o local exato, pura ilusão; todos conversando com a maior calma. Pessoas treinadas pulam na margem e amarram as cordas; uma sensação de alívio para nós quando pisamos em terra firme. Reiniciada a viagem o carro rodou atravessando campinas desertas até passar junto à uma grande fazenda; daí a poucos metros um pneu estourou o que fez pouca diferença, pois o córrego do Cotovelo estava cheio e não dava passagem. Faltavam ainda, segundo disseram, doze quilômetros para chegar à Sede. Dois moços, filhos do Dico do Brejão, proprietário, com grande destreza e agilidade, apanharam uma canoa e lá vamos nós que nunca havíamos entrado naquele tipo de embarcação; naquela altura já nem tínhamos medo de mais nada. Pela frente um aterro recém-construído com bastante barro; minha mãe atolou até o joelho num buraco. Aguardamos um jeep que viria da Colônia apanhar os passageiros; encostamos a um rancho de um pernambucano, choupana cercada de paus e coberta de palha de buriti. Os meninos, sem camisa, nem preocupavam com os pernilongos que nos atacavam; pude saber depois que os insetos eram as famosas muriçocas, atacavam sem piedade, afinal era sangue novo que chegava. Amontoados no jeep sem capota chegamos à Sede da Colônia. A primeira visão que tive foi de um jogo de futebol no antigo campo. Poucas casas, um povo muito acolhedor. Mesmo durante toda a viagem éramos alvo de toda a atenção por parte das pessoas. Hospedamos na pensão do Senhor Joãozinho Gonzaga que também era o farmacêutico do lugar. Lá começamos a conhecer as pessoas. Chegavam e se apresentavam conversando de um modo totalmente diferente; parece que estávamos noutro país. Os homens com o revólver à cintura entravam e saiam com toda naturalidade; nós estupefatos, pois nunca tínhamos visto pessoas armadas. No dia seguinte fomos conhecer o lugar. Em Brasilândia (ninguém falava esse nome, mas Sede) quase não havia casas. Poucos armazéns, alguns moradores e bastante movimento, pois era o aglomerado mais próximo de toda região. Algumas construções modernas, como casa, capela e escola compunham o conjunto da administração. O meio de transporte era o caminhão e avião, no rio Paracatu naqueles dias ainda chegou o vapor Paracatuzinho. Sempre que ocorria uma emergência, o avião era chamado pelo serviço de rádio; o destino geralmente era Pirapora. Depois de dois dias, chega o caminhão com a mudança. Junto vinha uma turbina para uma uzina que estava sendo construída atrás da serra para fornecer energia elétrica; a energia existente provinha de um motor a diesel. Meu pai e os irmãos contaram que comeu peixe assado preparado por uma senhora chamada Dona Rumânia que também vinha no caminhão; a dura realidade não assustava aquele povo acostumado no sertão. Alguns moradores da Sede naquele tempo: Milton Magri que depois foi escrivão, Lindorifo esposo de Dona Edith Nery professora, também foi delegado de polícia, Eurípedes comerciante, Sinval do Almoxarifado e posteriormente agente dos correios, Nobelino Cearense dono do armazém, Jorginho da pensão Coscap e muitos outros que não lembro mais; colonos havia Antônio Laurindo no Lajeado, João Menezes na Barra, os Duartes na Pedra Fincada, Zico Matoso no Boqueirão, Abel também no Boqueirão, Pedro Dourado no Sucuriú, Zé Manoel no Córrego da Ponte, Sô Diocleciano, Nego Paiva no Gado Bravo e muitos outros. Os vaqueiros da Colônia transitavam na Sede com bombachas, equipados para a lida no campo; aquele tempo existiam as brabesas , gado criado na lei da natureza que era capturado pelos valentes peões. Como a casa do lote da Novilha Brava ainda estava ocupada, ficamos em uma pequena casa no Lajeado, cedida pelo Senhor Antônio Laurindo. Parte da mudança veio na carroça, cheguei com meu pai e irmãos para fazer um barraco para o vaqueiro Agoncilio. Era o dia nove de fevereiro de cinqüenta e nove, Após um dia de estafante caminhada chegamos à noite; a mudança foi feita por etapas.
(GMP)

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